A invasão dos javalis na Arrábida



Extinta há décadas, a espécie voltou em força à Arrábida. Deixam um rasto de prejuízos e de sustos.

Andassem os javalis pelas encostas desabitadas da serra da Arrábida e talvez mais pessoas partilhassem a opinião de Eduardo Deitado, 69 anos, residente na Aldeia Grande. “Os javalis têm aparecido na quinta onde eu trabalho. Procuram a água do sistema de rega e não têm feito grandes estragos. São animais selvagens, temos de viver com eles.”
O problema é quando os bichos se chegam aos homens, insensíveis aos perigos de estradas municipais e nacionais, para se banquetearem das bolotas que brotam da meia dúzia de sobreiros de um parque urbano.
Foi o que aconteceu em Vila Nogueira de Azeitão há duas semanas. “Vieram duas noites seguidas, escavaram à volta das árvores e destruíram o relvado em redor das árvores. Há casas ali a poucos metros. Já entram dentro da povoação, estamos perante uma praga de javalis.” Celestina Neves, presidente da Junta de Freguesia de São Lourenço – a maior das que ficam na zona do Parque Natural da Arrábida – conta que “desde há dois anos que o problema se tem vindo a agravar”. “Tenho recebido queixas de danos em propriedades e os animais estão a pôr em risco a flora única da serra.” Há meses, o encontro imediato entre um carro e um javali em plena Estrada Nacional 10 – no troço entre Azeitão e Setúbal – teve um desfecho pouco simpático: muita chapa amolgada, um animal ferido e uma condutora em estado de choque. Cresce a preocupação de que acidentes como este se repitam, com consequências mais graves.

CAÇA DIFÍCIL
As incursões dos javalis, espécie que regressou à Arrábida há cerca de quatro anos, depois de se terem extinguido na região no início do século passado, levaram à realização de uma reunião entre moradores, autarcas, autoridades e empresários da região. António Soares Franco, presidente da empresa vinícola José Maria da Fonseca, esteve nessa reunião, em que se discutiram formas de controlar a população de javalis. “Sou caçador há mais de quarenta anos e vai ser muito difícil controlar os animais que andam na serra. Já se fizeram caçadas com montarias [prática em que se usam cães], mas o terreno da Arrábida não é propício. Não há clareiras que permitam fazer tiro em segurança e com eficácia. O que se pode fazer é organizar esperas, mas isso obrigaria a que se concedessem novas licenças de caça aos proprietários dos terrenos, o que o Parque não permite há muitos anos.”
Soares Franco tem licença para caçar nas suas terras e já abateu alguns animais. Mas para a caça ser eficaz seria preciso haver um esforço coletivo. “Teria de haver um entendimento entre os proprietários para uma caça organizada, com comedouros que atraíssem os animais. O javali caça-se com uma carabina equipada com um óculo. Só se tem uma oportunidade de acertar”, explica o empresário, para quem a pior opção é não fazer nada. “Os javalis da Arrábida estão sem controlo. Continuam a reproduzir-se e a população está a crescer. É impossível dizer ao certo quantos animais andam por aqui, mas arriscaria dizer que serão entre 150 a 200.”

LARGADOS NA SERRA
Ninguém sabe dizer ao certo a origem dos animais que, desde há cerca de cinco anos, começaram a ser vistos na Arrábida, mas todos contam diferentes versões da mesma história – terá sido um proprietário que trouxe umas dezenas de animais do Alentejo e os libertou na serra. Numa aldeia da Arrábida, um homem contou que trabalhou numa propriedade da zona de Casais da Serra em que o patrão trouxe animais do Alentejo que depois foram soltos. Sem predadores naturais, os javalis prosperaram. As fêmeas podem ter até duas ninhadas de quatro a cinco crias a cada três anos, o que propicia um rápido crescimento da população.
Carlos Fonseca, biólogo e investigador da Universidade de Aveiro, tem participado em vários estudos sobre a população de javalis em Portugal e Espanha. Apesar de não conhecer em concreto o caso da Arrábida, não fica surpreendido com a presença do javali na região. “As populações de javali estão a crescer em todo o País. Há algumas décadas estes animais estavam confinados a regiões mais isoladas, mas, com o abandono do mundo rural, foram expandindo o seu território até ao litoral. Os javalis vivem em grupos matriarcais, em que normalmente só existe um macho reprodutor. Os machos juvenis tendem a deixar o grupo em que foram criados para começar novas famílias e é assim que se vão dispersando pelo território.”
O cientista sublinha a mobilidade dos porcos selvagens: “Chegam a percorrer 40 km numa noite. Sabemos que há javalis nas matas da Lagoa de Albufeira ou até na Aroeira, por isso não acho difícil de admitir que, a partir destas populações, tenham chegado os primeiros exemplares à Arrábida, onde encontraram um território propício.” E se é verdade que os javalis evitam contactos diretos com humanos, a verdade é que têm perdido o medo de se chegar junto das povoações, onde jardins, hortas e mesmo lixos domésticos deixados na rua lhes proporcionam refeições fáceis.

PATRIMÓNIO EM RISCO
A Arrábida tem em curso a candidatura a Património da Humanidade. Um dos argumentos do projeto são as espécies vegetais únicas da Arrábida, como é o caso das orquídeas. Azar dos azares, os bolbos desta planta são um dos pratos favoritos dos javalis. “Há muita gente que vem à Arrábida para ver e fotografar estas flores. São espécies protegidas e até é proibido arrancá-las. Chegam-me relatos de pessoas que foram à procura das orquídeas e encontraram as zonas onde elas costumavam crescer destruídas pelos javalis. Eles enterram o focinho na terra para escavar e deixam tudo num alvoroço”, conta Celestina Neves.
A presidente da Junta de São Lourenço é uma das vozes que critica o imobilismo do Parque Natural da Serra da Arrábida, que funciona sob a alçada do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF). O empresário António Sousa Franco acompanha as críticas: “Ainda há quem tenha a ideia do funcionamento de um parque natural como se fosse um museu em que em nada se pode tocar. É urgente rever o plano de ordenamento. Tem de ser regularizada a caça ordenada que permita controlar a população de javalis, que está em total desequilíbrio. O parque tem de deixar que os proprietários se organizem.”
Contactado o gabinete de informação e comunicação do ICNF revela que as autoridades estão atentas ao problema dos javalis. Mas a intervenção está condicionada por vários fatores: “A verificação no terreno é fundamental para enquadramento das ações a desenvolver ou autorizar. Os proprietários, sempre que ocorram prejuízos nas culturas, podem requerer individualmente aos serviços do ICNF a correção de densidade de javalis, a qual será avaliada pelo técnico da área com vista à sua autorização. Estas ações podem enquadrar a caça à espécie pelo processo de espera, sendo nesse caso emitida credencial para o efeito.” Já se realizaram caçadas a javalis, sem grandes resultados, mas o ICNF admite que poderão acontecer novas ações: “À semelhança do que ocorreu no ano anterior, as ações de correção de densidade já foram equacionadas e vão ser implementadas brevemente. Estão em causa sobretudo questões de segurança, tendo em conta a proximidade de casas de habitação, da estrada nacional e de outras vias de comunicação”, explica o referido gabinete em resposta à Domingo.

SUSTOS À PORTA DE CASA
Artur Silva e Cândida Abreu têm ambos 77 anos e há oito que se instalaram definitivamente numa pequena quinta do Vale de Picheleiros, no coração da Arrábida. Na Quinta da Tata (o nome pelo qual Cândida é conhecida por vizinhos e amigos) criam galinhas, patos, cisnes, pombos, cães e outros bichos que fazem os encantos dos cinco filhos e 16 netos do casal. Há cerca de três anos, a horta contígua ao microzoo que instalaram nas suas terras foi invadido por visitantes indesejados. “Acordei a meio da noite com o barulho dos javalis. Em pouco minutos revolveram a horta toda e destruíram as culturas. Não voltaram a aparecer por aqui, mas ouvimos muitos relatos de quem tem tido prejuízo por causa destes animais.”
Luís Oliveira, sócio de uma fábrica de azulejos em Azeitão, tem visto muitos animais atravessar as estradas quando conduz à noite. “Já o via até nas ruas da aldeia. Espero que não aconteça um acidente grave. Está a ficar perigoso”, admite.
António Balugas, de 72 anos, vive na Aldeia da Piedade, arredores de Vila Nogueira de Azeitão. Trabalha numa quinta onde, a par da exploração agrícola, funciona um turismo rural, nos Casais da Serra. António lembra um episódio insólito, que aconteceu há cerca de três anos: “Estava alojado na quinta um casal de turistas holandeses com um filho. Numa tarde, estavam os três na piscina quando se aproximou um grupo de javalis. Entraram no recinto da piscina. Fui chamado aos gritos pelo pessoal e consegui espantar os bichos, mas os turistas apanharam um grande susto.”
O biólogo Carlos Fonseca lembra que os javalis não atacam o ser humano, mas existem outros riscos da convivência das espécies. “Os javalis podem ser portadores de parasitas e doenças transmissíveis ao homem, pelo que os contactos com animais selvagens têm riscos”, explica o investigador da Universidade de Aveiro.
António Soares Franco faz valer a sua experiência de décadas a perseguir caça grossa em terras muito a sul de Azeitão: “É impossível erradicar os javalis. Podemos talvez controlar a população, mas temos de aprender a viver com eles.”

ESPÉCIE EM CRESCIMENTO
Nas últimas décadas, a população de javalis tem vindo a crescer em Portugal. A espécie cresce em toda a Europa, uma vez que por todo o Velho Continente se verifica a tendência de abandono dos campos e concentração das populações em centros urbanos. Livres da presença do seu maior predador (na natureza só os lobos e as doenças ameaçam os javalis), os animais têm conquistado territórios e começam a aparecer em zonas urbanas. “Há pouco tempo foram vistos javalis junto ao hospital de Coimbra”, diz o biólogo Carlos Fonseca, que estima que existirão no País “entre 70 a 90 mil animais” na natureza.

Fonte: Correio da Manha



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